Abordagem cirúrgica minimamente invasiva no tratamento da gangrena de Fournier

Abstract

A gangrena de Fournier é uma fasceite necrotizante do períneo e genitália externa que possui alta morbidade e mortalidade devido ao diagnóstico tardio e as comorbidades associadas nesses pacientes. Representa um desafio clínico e cirúrgico para uma equipe multidisciplinar onde o cirurgião plástico é de importância fundamental tanto na fase aguda quanto na reparadora para devolver o contorno e a funcionalidade às regiões acometidas pelos desbridamentos amplos de tecido necrótico. Adotamos uma abordagem cirúrgica minimamente invasiva que combina a utilização de terapia de pressão negativa tipo VAC® (KCI USA, Inc., San Antonio,TX) com o emprego da matriz dérmica Integra® (Integra LifeSciences Corporation, Plainsboro, NJ), retalhos locais e colostomia em caso necessário. Apresentamos três pacientes consecutivos com acometimento diverso da região perineal e regiões adjacentes tratados com sucesso mediante esta abordagem. Os autores ressaltam como estes pacientes críticos com feridas complexas podem ser tratados de maneira simples e com mínima morbidade na reconstrução. * Médico Residente de Cirurgia Plástica e Reparadora do Instituto Ivo Pitanguy, Rio de Janeiro, Brasil. ** Staff do Serviço de Cirurgia Plástica, Estética e Reparadora da Rede D´or, Rio de Janeiro, Brasil. *** Preceptor do Instituto Ivo Pitanguy e Staff do Serviço de Cirurgia Plástica, Estética e Reparadora da Rede D´or, Rio de Janeiro, Brasil.

Monografia vencedora do 2o lugar do prêmio Francisco Slagado, destinado a monografias apresentdas por residentes R1 e R2 ao concurso de monografias da Associação de Ex-Alunos do Professor Ivo Pitanguy.

INTRODUÇÃO
A gangrena de Fournier, descrita por Jean Alfred Fournier no ano 1883 (1), é uma fasceíte necrotizante infecciosa rapidamente progressiva do períneo e genitália externa caracterizada por uma endarterite obliterante e trombose das artérias do subcutâneo que resulta numa gangrena da pele e subcutâneo sobrejacente (2,3). A mortalidade mantém-se elevada, girando em torno de 16-45%, apesar do tratamento clínico e desbridamento agressivo, devido ao diagnóstico tardio e as comorbidades associadas nestes pacientes (4).

Os defeitos extensos produzidos pelo desbridamento amplo representam um desafio para a cirurgia reparadora devido à anatomia e fisiologia desta região. Por tanto, a seleção criteriosa dos diversos recursos terapêuticos para obter um resultado estético e funcional satisfatório resulta muito importante. Terapias menos invasivas empregadas em pacientes críticos com feridas complexas em outras regiões do corpo, incluindo terapia a vácuo e matrizes dérmicas tem sido pouco aplicadas em pacientes com gangrena de Fournier (1,4).

Apresentamos três casos de gangrena de Fournier tratados mediante a associação de terapia à vácuo, matriz dérmica e retalhos locais dermocutâneos.

MATERIAL E MÉTODO
Caso 1
Paciente masculino de 66 anos, diabético, hipertenso, com doença arterial coronariana, foi internado por fasceíte necrotizante da região perineal secundária a abscesso perianal que evoluiu para sepse grave (Figura 1). Logo após estabilização hemodinâmica e respiratória, foi realizado desbridamento amplo do períneo, fossas isquiorretais, bolsa escrotal, região glútea, coxa esquerda e realizada colostomia transversa protetora. Foi iniciada antibioticoterapia de amplo espectro e ajustada conforme resultado das culturas. Depois de três desbridamentos com intervalo de 48hs (Figura 2), colocou-se sistema de curativo à vácuo tipo VAC® (KCI USA, Inc., San Antonio,TX) com esponja de prata a 125mmHg em forma contínua, sendo trocado a cada 48-72hs (Figura 3). Através de toque retal foi diagnosticada uma fístula perianal de 1,5 cm que drenava na fossa isquiorretal esquerda. O canal anal foi protegido com tampão anorretal. Após 12 dias começaram os avançamentos parciais de retalhos dermocutâneos na região glútea esquerda e o fechamento primário parcial da coxa. No 19º dia obteve-se o fechamento completo do defeito da coxa com retalho dermocutâneo e colocado Integra® Dermal Regeneration Template (Integra LifeSciences Corporation, Plainsboro, NJ) em bolsa escrotal, períneo e região glútea esquerda em formato de folha de livro (Figura 4). Optou-se por associar terapia a vácuo com troca de curativo a cada 5 dias. Este curativo englobava a região anal, mas não drenava secreções intestinais em vista do tampão colocado distalmente à fístula. Após 10 dias, foi retirada a terapia VAC® e a membrana de silicone da matriz com total integração. Nesse mesmo dia foi realizada a sutura simples do defeito escrotal e avançamento do retalho glúteo (Figura 5). Aos 40 dias do início do tratamento, o paciente apresentou fístula perianal com escasso débito mucoso, assim como fechamento do extenso defeito com sucesso (Figura 6).


Figura 1. Dia 1. Ferimento antes do primeiro desbridamento cirúrgico.


Figura 2. Desbridamento extenso de ferimento no primeiro ato operatório, com identificação de fístula perianal e colocação de tampão distal à fístula.


Figura 3. Após 48h do primeiro desbridamento, com VAC® envolvendo toda a área acometida, assim como a região de canal anal.


Figura 4. Dia 19º. Colocação de Integra® em bolsa escrotal, períneo e região glútea esquerda, em folha de livro. Notar defeito da coxa já fechado.

Figura 5. Dia 29º. Fechamento do defeito escrotal e retalho glúteo de avanço. Notar matriz integrada.

Figura 6. Dia 40º. Fechamento do extenso defeito e retirada do tampão anorretal

Caso 2

Paciente masculino de 40 anos, hipertenso, consultou com queixa de dor e edema perianal de cinco dias de evolução, sendo diagnosticada gangrena de Fournier e iniciada estabilização e antibioticoterapia de amplo espectro. Realizou-se desbridamento extenso perianal, região glútea e bolsa escrotal esquerda, além de fistulectomia de fístula perianal que drenava em bolsa escrotal (Figura 7). Passou por mais 3 desbridamentos diários e, no quarto procedimento, colocou-se o curativo VAC® com esponja de prata a 125mmHg em forma contínua. No 9º dia realizou-se colocação de matriz dérmica Integra® na região sacral, escrotal e glútea esquerda associada ao VAC® (Figura 8). No 15º dia, realizou-se avançamento de dois retalhos glúteos para fechamento parcial da ferida. No 22º dia recebeu alta com ferimento completamente fechado (Figura 9).

Figura 7: Aspecto do ferimento após o primeiro desbridamento cirúrgico.

Figura 8: Matriz dérmica colocada sobre o leito

Figura 9: Aspecto final da ferida após avançamento de retalhos glúteos dermocutâneos.

Caso 3

Paciente masculino de 70 anos, diabético, hipertenso, com história de AVE recente, fibrilação auricular crônica, endoprotese em aneurisma de aorta abdominal, foi internado por quadro de sepse secundária a gangrena de Fournier. Após estabilização clínica realizou-se colostomia e desbridamento amplo da região perineal e escrotal bilateral (Figura 10). Após o terceiro desbridamento colocou-se curativo VAC® com esponja de prata a 125 mmHg em forma contínua, sendo trocado a cada 48-72hs (Figura 11). As medidas de suporte clínico incluindo antibioticoterapia e suporte nutricional foram instaladas. Depois de duas semanas de desbridamento e tratamento a vácuo começou-se a colocação de Integra® na região perineal mantendo-se o tratamento com VAC® (Figura 12). Dez dias após tratou-se o hidrocele e avançaram-se os retalhos locais dermocutâneos para fechamento do períneo. Duas semanas após foi retirado o VAC® e realizado o fechamento definitivo da região escrotal (Figura 13).

Figura 10: Visão lateral esquerda com suspensão da bolsa escrotal esquerda. Note-se o comprometimento perineal e escrotal amplo e hidrocele.

Figura 11: Curativo a vácuo tipo VAC com esponja de prata adaptado a região perineoescrotal.

Figura 12: Matriz dérmica colocada sobre o leito perineal.

Figura 13: Aspecto final após fechamento escrotal com avançamento de retalho dermocutâneo escrotal direito.

DISCUSSÃO

O diagnóstico precoce da gangrena de Fournier é desafiador, já que as manifestações superficiais mínimas costumam apresentar poucos sinais clínicos e os pacientes geralmente procuram atendimento numa fase avançada (4). Esta doença é considerada uma emergência cirúrgica e requer estabilização através de ressuscitação, antibioticoterapia e desbridamentos agressivos (2,3). A abordagem deve ser multidisciplinar, incluindo suporte nutricional e tratamento das comorbidades identificadas (3). Geralmente são necessários uma série de desbridamentos até que o tecido necrótico seja eliminado e o processo infeccioso controlado (1). As cirurgias resultam em defeitos que, segundo a extensão e localização, podem precisar de procedimentos reparadores de complexidade variável.

A utilização da terapia à vácuo compreende a utilização de pressão subatmosférica como tratamento adjuvante não invasivo no fechamento de feridas (5). É benéfica para o tratamento desta patologia tanto na fase aguda quanto na fase reparadora desde que seja usada de forma criteriosa e bem indicada.

O curativo a vácuo acelera a granulação da ferida, reduz o número de desbridamentos, trocas de curativo e tamanho do defeito, aproximando as bordas e preparando-o para uma futura reconstrução com menor morbidade (3,4,6,7). Isto representa um grande benefício aos pacientes com gangrena de Fournier, que geralmente apresentam-se deteriorados e com uma reserva funcional diminuída devido a insuficiências orgânicas.

Outra vantagem do VAC® nestes casos resulta da capacidade de se adaptar aos relevos naturais da anatomia perineal e a defeitos extensos e profundos, e de isolar a ferida do contato com as fezes e a urina evitando assim a contaminação. Também promove estabilidade das estruturas embaixo do curativo, o que gera maior conforto no pós-operatório, pois diminui a dor e o paciente não precisa ficar imobilizado, observando-se melhor aceitação e adesão ao tratamento (8).

Nos três casos, a dificuldade da colocação do curativo VAC® no períneo encontrava-se na proximidade da zona desbridada com o ânus e a possibilidade de aspiração de fezes pelo curativo com contaminação conseqüente do resto da ferida. Nossa abordagem incluiu uma derivação do trânsito intestinal nos três casos, o que permitiu acelerar a resolução do abscesso perianal e facilitou a aplicação do VAC® no períneo. No caso 1, a região anal foi incluída no curativo e um tampão de proteção em dedo de luva introduzido no canal anal permitiu isolar a ferida das secreções retais e deixar que o vácuo fosse exercido somente sobre o leito perianal cruento,.

A etapa reparadora começa quando a ferida está livre de contaminação e tecido necrótico e o paciente encontra-se em condições clínicas adequadas (1). O objetivo de tal reconstrução deve ser, além da cobertura do defeito, a preservação da função anorretal e urogenital (4), da movimentação dos membros inferiores e, se possível, dos contornos naturais. A escolha do método cirúrgico ideal difere em cada caso dependendo da condição do paciente, tamanho, localização e severidade do defeito, e disponibilidade de tecidos vizinhos (4).

As matrizes dérmicas como Integra® representam uma opção terapêutica importante na etapa reparadora. Estas conseguem poupar a utilização de eventuais tecidos nobres da vizinhança e unidades motoras de outras regiões do corpo e permite um melhor contorno da zona reconstruída sem deixar alterações de contorno de áreas doadoras (9).

As vantagens do uso da matriz dérmica na gangrena de Fournier incluem sua disponibilidade imediata e capacidade de cobrir áreas de magnitude importante, inclusive com exposição tendinosa, ligamentar, articular e óssea. Os defeitos de volume secundários a desbridamentos profundos podem ser tratados mediante a aplicação da matriz dérmica em varias camadas (9), embora não existam estudos que apóiem uma padronização determinada em relação aos intervalos de reaplicação de cada camada. A modalidade de aplicação não convencional empregado nos primeiros dois casos, configurado-a em folha de livro, teve como objetivo: resolver um defeito de volume, nivelando a região glútea e perineal com os tecidos vizinhos numa única aplicação, facilitar o avançamento e a integração do retalho glúteo dermocutâneo numa etapa subseqüente, e ajudar na preservação da mobilidade dos membros.

O uso da matriz dérmica deve ser indicado quando as infecções forem superadas e após isolamento de áreas susceptíveis de contaminação com ajuda de curativos como o VAC®, especialmente na região perineal, onde existe uma carga alta de bactérias (9). Nossa experiência nos três casos apresentados não mostrou infecções da matriz, o que ressalta a segurança da nossa abordagem. Caso aconteçam infecções, estas podem ser diagnosticadas através da placa de silicone e tratadas sem comprometer o resto da ferida através da remoção local do silicone, retirada do tecido infectado e coleta de material para cultura, curativos com antissépticos e esponja de prata (9).

A utilização do VAC® sobre a matriz dérmica tem grande utilidade na região perineal e escrotal. Este simplifica o cuidado da matriz, oferece imobilização e evita sua contaminação (10). Embora existam resultados controversos em estudos histológicos em humanos comparando a neovascularização do Integra® com e sem o emprego de VAC® (10), dois estudos in vitro (12) e relatos de casos clínicos (5,11) mostram uma integração precoce da matriz com a terapia à vácuo. Nossa experiência mostrou uma integração rápida após 10, 7 e 10 dias de sua aplicação no caso 1, 2 e 3 respectivamente o que permitiu uma cobertura definitiva precoce do leito mediante avançamento de retalhos glúteos com maior segurança.

Em conclusão, o tratamento cirúrgico minimamente invasivo em conjunto com medidas de suporte clínico adequadas proporciona uma alternativa terapêutica especialmente útil em casos selecionados de pacientes críticos com feridas perineais complexas. A abordagem utilizada nos casos de gangrena de Fournier reportados acima permitiu um manejo simplificado da ferida e serviu como ponte para uma reconstrução simples mediante fechamento primário e avanço de retalhos locais com maior segurança e mínima morbidade.

 

REFERÊNCIAS

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3. Shyam DC, Rapsang AG. Fournier’s gangrene. The Surgeon. 2013; 11:222-32.

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9. Jeng JC, Fidler PE, Sokolich JC e col. Seven Years’ Experience With Integra® as a Reconstructive Tool. J Burn Care Res. 2007; 28:120–126.

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